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Quem disse que temos que ser felizes para sempre?

Ao longo de milhares de anos, seja na Idade Antiga, Moderna ou Medieval a felicidade sempre foi um temaé recorrente e fundamental em toda a história do pensamento. Não apenas a felicidade terrestre é o objeto central das filosofias de Aristóteles, Epicuro e Espinosa, mas a busca da felicidade inspira também o século XVIII (literário e político), assim como todo um lado solar da filosofia contemporânea: Albert Camus, John Cowper Powys e Ernst Bloch. Sem querer aqui examinar todas essas doutrinas, podemos pelo menos constatar sua ocultação pelo pensamento trágico: Soren Kierkegaard inaugura a modernidade pela angústia, Martin Heidegger centra suas análises “existenciais” no cuidado e no ser-para-a-morte e Karl Jaspers (de humanidade nobre e admirável) abre por certo a existência à comunicação, mas fecha-a sobre a culpa. Quanto a nosso Jean-Paul Sartre, embora nos ensine nossa liberdade original, em seus textos não propõe nem deseja justificar nenhum valor concreto, nenhum conteúdo para a responsabilidade; se a generosidade inspirava sua ação pessoal e política esta permanecia sem vínculo com seus escritos filosóficos.

Devemos nos referir, é claro, à nossa época excepcionalmente violenta, dramática e miserável: é preciso de fato conhecer e entender o horror para combatê-lo. Mas ao ocultarem o lado solar e dinâmico do pensamento, os filósofos trágicos tornam-se incapazes de dizer por que (e para que) é conveniente combater a violência, a opressão, a humilhação, a miséria e a doença. As próprias políticas democráticas ficam assim privadas de justificação fundamental e de razão de ser.

É aqui que intervém a reflexão sobre a felicidade e a ação para sua realização. Constatemos primeiramente que todos os humilhados e ofendidos buscam uma saída: uma liberação e uma alegria de viver. Desempregados e imigrados procuram se safar, contam seus sonhos (trabalho, moradia, independência, paz, reconhecimento, convivência, “a vida, ora!”). A evidência reflexiva reside nisso: é a luz de um futuro, isto é, de um ideal de existência, que, retroativamente, o presente se revela como falta e, de fato, como injusto, injustificado, absolutamente intolerável. Uma revolta, uma reivindicação, uma ação podem resultar desse olhar. Melhor: somente desse olhar pode resultar uma ação.

A ação é, portanto forçosamente iluminada, orientada por valores e critérios (referências) que vêm do futuro para nós. Podemos assim nos render à evidência: é a felicidade que constitui o horizonte e o oriente de toda ação, e, mais profundamente, de toda existência. E porque deve poder ser encarnada e realizada, ela é o fundamento e o princípio verdadeiro de toda ação. Só o movimento em direção a uma felicidade real pode justificar e fundar, isto é, dar um sentido à existência como tal e, por conseguinte à condição humana.

Duas questões surgem então. Por que privilegiar este valor, a felicidade (e não, por exemplo, a liberdade, a justiça ou o amor)? E, uma vez justificado esse privilégio (por reflexão e não por convicção pessoal), é possível dar um conteúdo a essa felicidade e não se limitar a invocá-la ou a ela se referir?

Para ser útil, a resposta deve ser dada em termos contemporâneos. A felicidade é o valor privilegiado porque, na realidade, ela é o objeto e a significação de todos os outros valores, quando estes são afirmativos da existência. Desejamos a liberdade, a justiça e o amor apenas para alcançar com outrem uma forma de existência que seja completa e comporte um conteúdo e uma significação substanciais. A felicidade designa a melhor das existências, a vida pessoal mais completa e mais rica, isto é, o conjunto dos conteúdos existenciais que dão à vida plenitude e significação. Podemos considerar preferível essa riqueza existencial última, esse valor superior a todos os valores afirmativos, pois ele os anima, os engloba e os realiza.

A segunda questão pode então ser formulada: qual é o conteúdo da felicidade, isto é, a experiência e o sentimento de si sempre presentes no âmago de todas as ações quando são afirmativas? Para responder a esta questão do conteúdo do preferível, devemos saber o que é essa individualidade, esse ser humano que busca sempre a felicidade e a alcança com mais freqüência do que o dizem.

O ser humano é sujeito. Não cogito puro e abstrato, mas carne e consciência, isto é, corpo-sujeito capaz de tornar-se sujeito no sentido pleno. E este não é pura racionalidade nem puro instinto ou pulsão: é desejo. Não inconsciente, mas desejo consciente (embora obscuro) capaz de tornar-se desejo refletido. É para esse sujeito que se coloca a questão da felicidade: é porque o homem é a um só tempo desejo e consciência de si (capaz de tornar-se desejo refletido tendo o conhecimento de si) que ele pode se dirigir rumo a um gozo que seja satisfatório e que transcenda as condições atuais de sua vida. Assim, de modo esquemático, o sujeito não é nem um cogito abstrato e racional nem um inconsciente pulsional e inacessível; ele é um desejo consciente, capaz de eventualmente tornar-se desejo refletido e sujeito integral.

Compreendemos então o privilégio da felicidade e seu conteúdo: o ser humano busca a felicidade porque ele é desejo (e desejo consciente) e porque, sempre capaz de reflexão, está sempre em condições de contestar seu presente por seu futuro e de visar nesse futuro a plenitude de seu desejo.

Mas a vida espontânea do desejo desdobra-se na maioria das vezes como séries de conflitos e frustrações, ou, se quisermos, como sofrimento. Não se vá por isso renunciar ao desejo como nos propõem as religiões ascéticas, mas compreender que esse desejo, sendo também liberdade, deve sair de suas crises de modo excepcional e radical. Só uma transmutação de nosso olhar sobre as coisas nos permite alcançar realmente nosso desejo, isto é, o que há de preferível em nosso desejo: satisfação e justificação, plenitude e sentido. Em termos simples, digamos que a felicidade é a consumação real e autêntica do desejo; não o acesso imediato e caótico a todos os prazeres despedaçados (com suas contradições e decepções), mas o acesso à satisfação do prazer pensado, querido, partilhado e habitado por um sentido. Pode-se chamar de conversão filosófica essa transmutação do olhar: ela derruba com efeito a ordem de prioridade entre o objeto e o sujeito, este se tornando enquanto liberdade a origem das significações daquele. Se a conversão é partilhada, a vida é transformada. Alcança-se então não simples gozos, mas um gozo mais fundamental que é o gozo do ser. Não mais o “sentimento trágico da vida”, mas o sentimento substancial e alegre da existência.

Esse sentimento global deve repousar sobre atos concretos e presentes: são os atos da alegria (ou a alegria como ato). É pela atualidade da alegria, sua presença e sua realidade efetiva, que a felicidade poderá se instaurar para além do mero presente através do tempo de vida de um sujeito emancipado. Metáforas vêm ao espírito, tais como jardim, luz e castelo: significam pela imagem aquela plenitude real e aquele brilho implicados no sentimento feliz da existência.

O primeiro desses atos de alegria é a fundação de si pela reflexão, a filosofia e a cultura. Fundar-se é escolher e construir por si próprio os princípios de sua própria existência; o ato de fundação é o ato da autonomia e vale porque é um gozo, o gozo criador da liberdade. Essa liberdade, nova e segunda em relação à liberdade confusa da espontaneidade, é a um só tempo criação e ruptura. Ela inaugura um novo desejo e regozija-se por isso mesmo de uma nova existência, em que o sujeito renasce e dá início a si mesmo.

A alegria de dar início a si mesmo estende-se ao outro, que é o único a poder justificar plenamente o sujeito. O ato da alegria é aqui o ato do amor. Mas trata-se de um amor bem diferente. Desdobrado na reciprocidade reflexiva e iluminada, o amor deixa de ser dramático passional ou destruidor; superando os conflitos, torna-se alegria carnal e espiritual totalmente nova. Supera a ambigüidade, pois sabe que o amor-ódio não é o amor mas o medo, assim como supera o desejo de morte, que não é o amor mas a angústia. O amor todo outro é assim a transfiguração da carne e do espírito. “Felicidade de ser”, diz Saint-John Perse; mas essa alegria de amor só desdobra seu brilho na luz recíproca dos sujeitos refletidos. A alegria de ser, e de estar junto, pode então voltar-se para os outros e para o mundo. O preferível integra o gozo do mundo, gozo aberto e generoso. Apresentam-se esses atos que são a contemplação, a criação, e todas as formas da atividade que o espírito humano sabe inventar para seu contentamento; mas todos esses atos, na arte e na comunicação, na indústria e na pesquisa, na atividade pessoal e na ação pública, devem tornar-se atos substanciais antes de poderem integrar-se numa felicidade. E só se tornam substanciais se forem desdobrados no amor do ser e na luz da reflexão. Só então permitem alcançar aquela plenitude, aquele brilho e aquela significação que dizem o permanente gozo da existência. O preferível não é mais, por conseguinte, aquela eternidade estática imaginada pelos grandes mitos, mas um movimento substancial e ativo que poderia valer como viagem e instauração do ser.

Nenhum idealismo ingênuo nisso tudo, nem doutrina do impossível. A felicidade é a um só tempo o oriente e a atualidade de uma utopia concreta sempre possível. O extremo é sempre realizável. A liberdade implica-se a si própria já que se negando se destrói e se afirmando se constrói e se redobra. O preferível não está em outro lugar mas aqui mesmo, em nosso presente ou nosso futuro, mas neste mundo: cabe ainda dedicar-se com vigor à sua difícil instauração, cabe ainda abrir-se ao outro para juntos a ele se dedicarem.

Essa filosofia da felicidade, como se vê, é uma ética. Para nós, é até mesmo a ética enquanto tal. É a mais alta vocação da filosofia. E se a filosofia é, num sentido, a educadora da humanidade, é que esta, inteiramente voltada para a felicidade, aprende sem cessar o gosto, o sentido e os meios dessa felicidade.






1.     Como podemos entender o conceito de Felicidade tendo como pressuposto o olhar da Filosofia? Justifique sua resposta.

2.     Pesquise sobre os seguintes conceitos: Idealismo e Realismo.

3.     Quais as razões levam-nos a buscar a realização da Felicidade ao invés de outros valores com importância até superior a Felicidade? Justifique sua resposta.

4.     Tendo com pressuposto a visão de felicidade apresentada no texto como podemos definir o conceito de Alegria? Justifique sua resposta.

Pesquisa Histórica e Filosófica