A.
C. Ewing
SEÇÃO
INTRODUTÓRIA: A ORIGEM DO TERMO FILOSOFIA
Uma
definição precisa do termo "filosofia" é impraticável. Tentar
formulá-la poderia, ao menos de início, gerar equívocos. Com alguma espiritualidade,
alguém poderia defini-la como "tudo e nada, tudo ou nada...". Melhor
dizendo, a filosofia difere das ciências especiais na medida em que procura
oferecer uma imagem do pensamento humano - ou mesmo da realidade, até onde se
admite que isso possa ser feito -- como um todo. Contudo, na prática, o
conteúdo de informação real que a filosofia acrescenta às ciências especiais
tende a desvanecer-se até parecer não deixar vestígios. Acreditamos que esse
desvanecimento seja enganoso. Mas devemos admitir que até aqui a filosofia não
tem conseguido realizar suas grandes pretensões. Tampouco tem logrado êxito em
produzir um corpo de conhecimentos consensual comparável ao elaborado pelas
diversas ciências. Isso se deve em parte, embora não integralmente, ao fato de
que, quando obtemos conhecimento verdadeiro a respeito de determinada questão
situamos essa questão como pertencente à ciência e não à filosofia. 0 termo
"filósofo" significava originariamente "amante da
sabedoria", tendo surgido com a famosa réplica de Pitágoras aos que o
chamavam de "sábio". Insistia Pitágoras em que sua sabedoria
consistia unicamente em reconhecer sua ignorância, não devendo, portanto ser
chamado de "sábio", mas apenas de "amante da sabedoria".
Nessa acepção, "sabedoria" não se restringia a qualquer dos domínios
particulares do pensamento e, de modo similar, "filosofia" era
usualmente entendida como incluindo o que hoje denominamos "ciência".
Esse uso sobrevive ainda hoje em expressões como "filosofia natural".
Na medida em que uma grande produção de conhecimento especializado em um dado
campo ia sendo conquistada, o estudo desse campo se desprendia da filosofia,
passando a constituir uma disciplina independente. As últimas ciências que
assim evoluíram foram a psicologia e a sociologia. Dessa forma, poderíamos
falar de uma tendência à contração da esfera da filosofia na própria medida em
que o conhecimento se expande. Recusamo-nos a considerar filosóficas as
questões cujas respostas podem ser dadas empiricamente. Não desejamos com isso
sugerir que a filosofia poderá acabar sendo reduzida ao nada. Os conceitos
fundamentais das ciências, da figuração geral da experiência humana e da
realidade (na medida em que formamos crenças justificadas a seu respeito)
permanecem no âmbito da filosofia, visto que, por sua própria natureza, não
podem ser determinados pelos métodos das ciências especiais. É sem dúvida
desencorajador que os filósofos não tenham logrado maior concordância com respeito
a esses assuntos, mas não devemos concluir que a inexistência de um resultado
por todos reconhecido signifique que esforços foram realizados em vão. Dois
filósofos que discordem entre si podem estar contribuindo com algo de
inestimável valor, embora ambos não estejam em condição de escapar totalmente
ao erro: suas abordagens rivais podem ser consideradas mutuamente
complementares. O fato de filósofos distintos necessitarem dessa mútua
complementação torna evidente que o ato de filosofar não é unicamente um
processo individual, mas também um processo que possui uma contrapartida
social. Um dos casos em que a divisão do trabalho filosófico se torna bastante
proveitosa consiste na circunstância de que pessoas distintas usualmente
enfatizam aspectos diferentes de uma mesma questão. Contudo, boa parte da
filosofia volta-se mais para o modo pelo qual conhecemos as coisas do que
propriamente para as coisas que conhecemos, sendo essa uma segunda razão pela
qual a filosofia parece carecer de conteúdo. No entanto, discussões a respeito
de um critério definitivo de verdade podem determinar, na medida em que
recomendam a aplicação de um dado critério, quais as proposições que na prática
deliberamos serem verdadeiras. As discussões filosóficas da teoria do conhecimento
têm exercido, ainda que de modo indireto, importante efeito sobre as ciências.
UTILIZAÇÃO
DA FILOSOFIA
Há
uma questão que muita gente formula de imediato quando ouve falar de filosofia:
qual a utilidade da filosofia? Não há certamente expectativa alguma de que ela
contribua para a produção de riqueza material. Contudo, a menos que suponhamos
que a riqueza material seja a única coisa de valor, a incapacidade da filosofia
de promover esse tipo de riqueza não implica que não haja sentido prático em
filosofar. Não valorizamos a riqueza material por si própria - aquela pilha de
papel que chamamos de dinheiro não é boa por si mesma -, mas por contribuir
para nossa felicidade. Não resta dúvida de que uma das mais importantes fontes
de felicidade, ao menos para os que podem apreciá-la, consiste na busca da
verdade e na contemplação da realidade; eis aí o objetivo do filósofo. Ademais,
aqueles que, em nome de um ideal, não classificaram todos os prazeres como
idênticos em seu valor, tendo chegado a experimentar o prazer de filosofar,
consideraram essa experiência como superior em qualidade a qualquer outra.
Visto que a maior parte dos bens que a indústria produz, excetuando os que
suprem nossas necessidades básicas, valem apenas como fontes de prazer,
torna-se a filosofia perfeitamente apta, no que se refere à utilidade, para
competir com a maioria dos produtos industriais, quando poucos são os que podem
dedicar-se, em tempo integral à tarefa de filosofar. Mesmo que entendêssemos a
filosofia como fonte de um inocente prazer particularmente válido por si
próprio (obviamente, não apenas para os filósofos, mas também para todos
aqueles a quem eles ensinam e influenciam), não haveria razão para invejar tão
pequeno desperdício da força humana dedicada ao filosofar.
Não
esgotamos, porém, tudo o que pode ser dito em favor da filosofia. Pois, à parte
qualquer valor que lhe pertença intrinsecamente acima de seus efeitos, a
filosofia tem exercido, por mais que ignoremos isso, uma admirável influência
indireta até mesmo sobre a vida de gente que nunca ouviu falar nela.
Indiretamente, tem sido destilada através de sermões, da literatura, dos
jornais e da tradição oral, afetando assim toda a perspectiva geral do mundo.
Em grande parte, foi através de sua influência que se fez da religião cristã o
que ela é hoje. Devemos originalmente a filósofos idéias que desempenharam
papel fundamental para o pensamento em geral, mesmo em seu aspecto popular,
como, por exemplo, a concepção de que nenhum homem pode ser tratado apenas como
um meio ou a de que o estabelecimento de um governo depende do consentimento
dos governados. No âmbito da política, a influência das concepções filosóficas
tem sido expressiva. Nesse sentido, a Constituição norte-americana é, em grande
parte, uma aplicação das idéias do filósofo John Locke; ela apenas substitui o
monarca hereditário por um presidente. Similarmente, admite-se que as idéias de
Rousseau tenham sido decisivas para a Revolução Francesa de 1789. É inegável
que a influência da filosofia sobre a política pode às vezes ser nefasta: os
filósofos alemães do século X1X podem ser parcialmente responsabilizados pelo
desenvolvimento de um nacionalismo exacerbado que posteriormente veio a assumir
formas bastante deturpadas. Todavia, não resta dúvida de que essa responsabilidade
tem sido freqüentemente muito exagerada, sendo difícil determiná-la exatamente,
o que se deve ao fato de aqueles filósofos terem sido obscuros. Contudo, se uma
filosofia de má qualidade pode exercer influência nefasta sobre a política, com
as filosofias de boa qualidade pode ocorrer o contrário. Não há meios de
impedir tais influências sendo portanto extremamente oportuno que dediquemos
especial atenção à filosofia com o intuito de constatar se concepções que
exerceram alguma influência foram mais positivas do que nefastas. 0 mundo teria
sido poupado de muitos horrores caso os alemães tivessem sido influenciados por
uma filosofia melhor que a dos nazistas.
Torna-se,
portanto, imperativo abandonar a afirmação de que a filosofia é destituída de
valor, mesmo com respeito à riqueza material. Uma boa filosofia, ao influenciar
favoravelmente a política, pode gerar uma prosperidade incapaz de ser alcançada
sob a égide de uma filosofia inferior. Outrossim, o expressivo desenvolvimento
da ciência, com seus conseqüentes benefícios de ordem prática, muito depende de
seu background filosófico. Houve mesmo quem tenha chegado a afirmar, a
nosso ver exageradamente, que o desenvolvimento da civilização como um todo
seria concomitante às mudanças na idéia de causalidade, da concepção mágica de
causalidade à científica. De qualquer modo, a idéia de causalidade faz parte do
objeto da filosofia. A própria ‘perspectiva científica’, em grande parte, foi
introduzida inicialmente pelos filósofos.
Todavia,
certamente não estaremos nas melhores condições para fazer um estudo proveitoso
da filosofia se a encararmos principalmente como uma via indireta de acesso à
riqueza material. A principal contribuição da filosofia consiste no intangível background
intelectual do qual muito dependem o clima espiritual e a feição geral de uma
civilização. Nesse sentido, ocasionalmente se desenvolvem ambições ainda
maiores. Whitehead, um dos mais expressivos e acatados pensadores modernos,
descreve os dons da filosofia como "a capacidade de ver e de prever,
aliada a um sentido do valor da vida, ou seja, o sentido da importância que
anima todo esforço civilizado".1 Acrescenta ainda Whitehead
que, "quando uma civilização atinge seu auge sem coordená-lo com uma
filosofia de vida, difundem-se por toda a comunidade períodos de decadência e
monotonia, seguidos pela estagnação de todos os esforços". Para ele, a
filosofia consiste em "uma tentativa de esclarecer as crenças que, em
última instância, determinam nossa atenção, a qual integra a base de nosso
caráter". De um modo ou de outro, podemos ter como certo que o caráter de
uma civilização é enormemente influenciado por sua concepção geral da vida e da
realidade. Até pouco tempo, para a maioria das pessoas, essa concepção era
proporcionada pelo ensino religioso, mas as próprias concepções religiosas
foram muito influenciadas pelo pensamento filosófico. Ademais, a experiência
demonstra que as concepções religiosas podem conduzir-nos à loucura, a menos
que sejam continuamente submetidas a uma avaliação racional. Os que rejeitam
qualquer concepção religiosa devem ter o maior interesse em elaborar uma nova
concepção para, se possível, substituir a crença religiosa. E fazê-lo significa
engajar-se na filosofia.
Embora
não passa substituir a filosofia, a ciência suscita problemas filosóficos. Pois
ela não pode dizer-nos que lugar ocupam os fatos com que lida no esquema geral
das coisas, não conseguindo nem mesmo esclarecer suas relações com os espíritos
que os observam. Nem mesmo pode demonstrar, embora deva admitir, a existência
do mundo físico ou a legitimidade do uso dos princípios da indução para prever
as prováveis ocorrências futuras ou ultrapassar de alguma forma o que tem sido
efetivamente observada. Nenhum laboratório científico pode demonstrar em que sentido
os homens têm uma alma, se o universo tem ou não um propósito, se, e em que
sentido, somos livres, e assim por diante. Não desejamos com isso sugerir que a
filosofia possa resolver esses problemas; no entanto, se ela realmente não
puder, nada mais poderá fazê-lo, sendo certamente válido tentar descobrir ao
menos se tais problemas podem ser solucionados. Veremos, que a própria ciência
pressupõe continuamente conceitos que subsumem os domínios da filosofia E, da
mesma forma que nenhuma ciência pode florescer se não admitirmos tacitamente
uma resposta para certas questões filosóficas, não podemos fazer uso mental
adequado da ciência, com o intuito de implementar nosso desenvolvimento
intelectual, sem admitirmos uma visão de mundo mais ou menos coerente. Mesmo as
melhores conquistas da ciência moderna não teriam sido alcançadas se os
cientistas não tivessem adotado determinadas suposições de grandes e originais
filósofos, nas quais basearam todo o seu proceder. A concepção
"mecanicista" do universo, que caracterizou a ciência durante os
últimos três séculos, é derivada principalmente do filosofia de Descartes. Por
ter ocasionado maravilhosos resultados, o esquema mecanicista deve ser, em
parte, verdadeiro, ainda que parcialmente inadequado, apressando-se o cientista
em buscar no filósofo o necessário auxílio para erigir novo esquema que possa
substituir o antigo.
Um
segundo serviço inestimável prestada pela filosofia (especialmente pela
"filosofia crítica") reside no hábito, por ela estimulado, de
promover-se um julgamento imparcial considerando-se todas as facetas de uma
questão, e na idéia que ela oferece do que seja a evidência e de que devemos
buscar ou esperar de uma prova. Pode ser esse um importante questionamento das
inclinações emocionais e das conclusões precipitadas, sendo especialmente
necessário, e com freqüência negligenciado, em controvérsias políticas. Se
ambos os lados considerassem suas diferenças políticas munidos de espírito
filosófico, seria difícil admitir a eventualidade de uma guerra. O sucesso da
democracia depende muito da habilidade dos cidadãos em distinguir um bom de um
mau argumento, não se deixando enganar por confusões. A filosofia crítica
estabelece um padrão ideal para o raciocínio correto e capacita quem a estuda a
remanejar argumentos confusos. Talvez seja esse a motivação pela qual Whitehead
afirma, na passagem acima citada, que "nenhuma sociedade democrática
poderá alcançar êxito sem que a educação geral que a inspire exprima uma
perspectiva filosófica".
Na
medida em que admitirmos que certa cautela é desejável ao afirmarmos que os
homens não deixam de viver de acordo com uma filosofia na qual acreditam, e
enquanto atribuirmos a maior parte dos desacertos humanos exatamente à falta
desse desejo de sintonia com ideais mais nobres, não poderemos negar a extrema
relevância de crenças gerais a respeito da natureza do universo e do bem para a
determinação da progresso ou da degeneração da humanidade. Algumas partes da
filosofia inegavelmente produzem resultados práticos mais expressivos, mas não
devemos por isso incorrer no erro de supor que a aparente inexistência de um
suporte de ordem prática para determinado campo de estudo implica que a
investigação desse campo seja destituída de sentido prático. Conta-se que um
cientista, que costumava jactar-se de desprezar a dimensão prática de toda
pesquisa, disse certa vez a respeito de uma: "0 melhor disso tudo é que
ela possivelmente não revelará qualquer utilidade prática para quem quer que
seja." Todavia, essa linha de pesquisa acabou levando à descoberta da
eletricidade. De modo similar, estudos filosóficos por demais acadêmicos e
aparentemente destituídos de utilidade prática terminam por exercer profunda
influência sobre a visão de mundo, chegando até mesmo a afetar, em última instância,
a ética e a religião que adotamos. Pois as diferentes partes da filosofia, os
diferentes elementos que compõem nossa visão de mundo, deveriam integrar-se.
Tal é pelo menos o objetivo, nem sempre alcançável, de uma boa filosofia. Sendo
assim, conceitos à primeira vista muito distanciados de qualquer interesse de
ordem prática podem vir a afetar de modo vital outros conceitos que envolvem
mais de perto a vida diária.
Podemos
compreender agora o motivo pelo qual a filosofia não precisa recear a questão
de ter ou não valor prático. Devo ao mesmo tempo dizer que não aprovo de modo
algum uma concepção puramente pragmática da filosofia. A filosofia merece ser
valorizada por si própria, e não por seus efeitos indiretos de ordem prática. E
a melhor maneira de assegurarmos esses bons efeitos práticos é nos dedicarmos à
filosofia pela filosofia. Para encontrar a verdade, precisamos buscá-la
desinteressadamente. E o fato de a encontrarmos se revelará muito útil do ponto
de vista prático. Não obstante, uma preocupação prematura com seus efeitos
práticos só dificultará nossa busca do que é de fato verdadeiro. Muito menos
podemos fazer desses efeitos práticos o critério de sua verdade. As crenças são
úteis porque são verdadeiras, e não verdadeiras porque são úteis.2
PRINCIPAIS
DIVISÕES DA FILOSOFIA
A
seguinte classificação é usualmente aceita como uma especificação dos diversos
assuntos que compõem a filosofia.
(1)
Metafísica.3 Essa disciplina é concebida como o estudo da natureza
da realidade em seus aspectos mais gerais, na medida em que podemos fazê-lo.
Ela lida com questões do seguinte tipo: De que modo a matéria se relaciona com
o espírito? Qual dos dois é anterior? São os homens livres? 0 que chamamos de
eu (self) é uma substância ou apenas uma seqüência de experiências? É o
universo infinito? Deus existe? Até que ponto o universo é uma unidade ou uma
diversidade? Até que ponto um sistema é racional?
(2)
Recentemente, a filosofia crítica tem sido freqüentemente contraposta à
metafísica (que nesse caso é às vezes denominada filosofia especulativa). A
filosofia crítica consiste na análise e na crítica dos conceitos pertencentes
ao senso comum e às ciências. As ciências pressupõem certos conceitos que não
são suscetíveis de investigação por meio de métodos científicos, de modo que
passam a integrar o âmbito da filosofia. Nesse sentido, todas as ciências, com
exceção da matemática, pressupõem de alguma forma a concepção de lei natural;
cabe à filosofia, e não a qualquer das ciências particulares, examinar tal
concepção. De modo similar, pressupomos, em nossos diálogos mais comuns e menos
filosóficos, conceitos fortemente imbuídos de problemas filosóficos, como
matéria, espírito, causa, substância e número. Uma importante tarefa da
filosofia consiste exatamente em analisar conceitos desse tipo, precisar o que
significam e determinar em que medida sua aplicação ao estilo do senso comum
pode ser justificada. A parte da filosofia crítica que trata da investigação da
natureza e dos critérios de verdade, assim como da maneira pela qual obtemos
conhecimento, é chamada de epistemologia (teoria do conhecimento). Questões
específicas desse campo são, entre outras, as seguintes: Como podemos definir a
verdade? Qual a distinção entre conhecimento e crença? Podemos estar certos
daquilo que sabemos'? Quais as funções relativas do raciocínio, da intuição e
da experiência sensorial?
No
presente trabalho, iremos ocupar-nos desses dois ramos da filosofia , como
constituindo sua parte filosófica mais fundamental e característica.
Apontaremos ainda algumas disciplinas suplementares, que possuem certa
afinidade com a filosofia na acepção que lhe atribuímos neste livro, embora
dela sejam distintas na medida em que são dotadas de relativa autonomia. Esses
são os ramos que definiremos a seguir.
FILOSOFIA
E DISCIPLINAS AFINS
(1)
É difícil separar a lógica da epistemologia. Mesmo assim, ela é normalmente
considerada uma disciplina autônoma. Trata-se de um estudo dos diferentes tipos
de proposições e de suas relações que justificam uma inferência. Certas partes
da lógica revelam acentuada afinidade com a matemática; outras poderiam
igualmente ser classificadas como pertencentes à epistemologia.
(2)
A ética ou filosofia moral lida com os valores e a problemática do
"dever". Ela formula questões como; Qual o bem supremo? Qual a
definição de bem? A retidão de um ato depende unicamente de suas conseqüências?
Nossos juízos sobre nossos próprios deveres são subjetivos ou objetivos? Qual a
função de um ato punitivo? Qual a razão última pela qual não devemos mentir?
(3)
A filosofia política consiste na aplicação da filosofia (da ética
principalmente) a questões relacionadas com os indivíduos enquanto organizados
sob a égide de um Estado. Ela investiga questões do seguinte tipo: Um indivíduo
possui direitos que contrariam os interesses do Estado? Há no Estado algo mais
além dos indivíduos que o constituem? É a democracia a melhor forma de governo?
(4)
A estética consiste na aplicação da filosofia ao exame da arte e da noção de
beleza. É típico da estética formular questões do seguinte tipo: A beleza é
objetiva ou subjetiva? Qual é a função da arte? Para que aspectos de nossa
natureza apelam as diversas formas de beleza?
(5)
0 termo mais geral - teoria do valor - é às vezes utilizado de modo a abranger
o estudo dos valores considerados em si mesmos, embora esse ramo possa ser
incluído na ética ou na filosofia moral. De qualquer modo, é sempre possível
entendermos a noção de valor como uma concepção geral cujas espécies e
aplicações particulares são desenvolvidas pelas disciplinas apresentadas nos
itens (2), (3) e (4).
A TENTATIVA DE EXCLUIR A METAFISICA EM FACE DA OBJEÇAO DE QUE MESMO A FILOSOFIA CRI'TICA A PRESSUPÕE
Diversas
tentativas, algumas das quais discutiremos posteriormente, foram feitas no
sentido de excluir a metafísica como injustificável e confinar a filosofia à
sua versão crítica e às cinco áreas afins que mencionamos, na medida em que
podem ser consideradas uma abordagem ou um estudo crítico dos conceitos da
ciência e da vida prática. Tal concepção foi ocasionalmente expressa pela
afirmação de que a filosofia consiste, ou deve consistir, na análise das
proposições do senso comum. É óbvio que tal afirmação, quando se pretende
exclusiva, chega a ser exagerada. Pois, (1) mesmo que uma metafísica legítima e
positiva não seja possível, haverá certamente um campo de estudos que se ocupe
da refutação dos argumentos falaciosos que supostamente conduziriam a
conclusões metafísicas; e tal campo faria obviamente parte da filosofia. (2) A
menos que as proposições do senso comum sejam inteiramente falsas, sua análise
deverá fornecer-nos uma explicação geral daquela parcela da realidade à qual se
referem as proposições, ou seja, proporcionar, de algum modo, parte da
explicação geral do real que a metafísica busca oferecer. Nesse sentido,
poderíamos dizer que, se existir, o espírito - obviamente ele existe em certo
sentido - podemos obter uma metafísica do espírito a partir da análise das
proposições do senso comum relativas a nós mesmos, na medida em que tais
proposições são verdadeiras - de fato, seria difícil admitir que todas as
nossas proposições do senso comum acerca dos seres humanos possam ser de todo
falsas. Talvez não seja essa uma metafísica altamente elaborada e de grande
alcance, mas de qualquer modo envolverá genuínas proposições metafísicas. Mesmo
se afirmarmos que tudo que conhecemos é apenas aparência, a aparência implica
uma realidade que aparece e um espírito para o qual ela aparece, e como estes
não podem também ser apenas aparências, estaremos ainda admitindo alguma
metafísica. Até mesmo behaviorismo é uma metafísica. Não desejamos com isso
afirmar a possibilidade atual ou mesmo futura de ,ama metafísica, no sentido de
um sistema elaborado que nos propicie grande dose de informação sobre a
estrutura geral da realidade e as coisas que mais desejamos conhecer. Isso só
pode ser feito ambulando, tentando-se estabelecer e criticar as proposições
metafísicas em questão. Não obstante, por mais que sejamos apaixonadamente
metafísicos, não passaremos sem a filosofia crítica. A mera tentativa de
dispensá-la acarretará a produção de uma metafísica deplorável. Pois, mesmo na
metafísica, devemos partir dos conceitos do senso comum e das ciências, já que
não dispomos de outros. Ademais, se nossos fundamentos são seguros, devemos
cuidadosamente analisá-los e examiná-los. Dessa forma, não podemos separar
totalmente a filosofia crítica da metafísica, o que não impede um filósofo de
atribuir muito maior importância a um desses elementos.
A
FILOSOFIA E AS CIÊNCIAS ESPECIAIS
A
filosofia difere das ciências especiais com respeito a (1) sua maior
generalidade e (2) a seu método. Ela investiga os conceitos que são supostos
simultaneamente por inúmeras ciências diferentes, além das questões que não se
situam no âmbito das ciências. A ciência compartilha com o senso comum os
conceitos que demandam essa investigação filosófica, mas as descobertas de uma
ciência particular suscitam ou intensificam alguns problemas especiais, como,
por exemplo, n da ``relatividade", que exigem um tratamento filosófico por
não poderem ser discutidos adequadamente pela ciência em questão. Alguns
pensadores, como Herbert Spencer, conceberam essencialmente a filosofia como
uma síntese dos resultados das ciências, mas hoje em dia os filósofos, em
geral, não adotam essa concepção. Sem dúvida, se podemos obter resultados
filosóficos através de processos de síntese e generalização a partir das
descobertas científicas, isso deveria ser feito. Não obstante, o único modo de
sabermos se podemos ou não fazê-lo é tentar, e nesse ponto a filosofia não tem
alcançado muito progresso nem se revelado muito proveitosa. As grandes
filosofias do passado consistiram parcialmente numa investigação dos conceitos
fundamentais do pensamento, em tentativas de estabelecer fatos alegadamente
distintos daqueles com os quais lidava a ciência mediante métodos bastante
diferentes dos científicos. Elas comumente foram influenciadas, mais do que
parece, pelo estado contemporâneo da ciência, mas, sem dúvida, seria muito
enganador descrevê-las essencialmente como uma síntese dos resultados da
ciência. Mesmo filósofos antimetafísicos, como Hume, estiveram mais voltados
para os pressupostos da ciência do que para seus resultados.
Tampouco
devemos admitir sem reservas, como uma verdade da filosofa, o resultado ou
suposição científica válido em sua própria esfera. Sabemos, por exemplo, que a
física contemporânea parece ter mostrado que o tempo da física é inseparável do
espaço, o que de modo algum nos autoriza a renunciar esse resultado como um
princípio filosófico pelo qual o tempo pressuporia o espaço. Pois, pode ocorrer
que o resultado em questão seja verdadeiro apenas com relação ao tempo da
física, e isso apenas porque o tempo da física é medido em termos de espaço.
Por conseguinte, não precisa ser verdadeiro com relação ao tempo da nossa
experiência, do qual o tempo da física é uma abstração ou construção. A ciência
pode progredir por meio de ficções metodológicas usando termos num sentido
invulgar que a filosofia tem de corrigir. 0 termo filosofia da ciência é
usualmente aplicado ao ramo da lógica que lida de maneira especializada com os
métodos das diversas ciências.
O MÉTODO DA FILOSOFIA COMPARADO AO MÉTODO CIENTÍFICO
Com
respeito a seus métodos, a filosofia difere fundamentalmente das ciências especiais.
A não ser quando se aplica a matemática, todas as ciências utilizam processos
de generalização empírica, mas a filosofia reserva a tal método um lugar muito
modesto. Por outro lado, a tentativa de assimilar a filosofia à matemática,
embora muito freqüente, não tem sido bem-sucedida (exceto em determinados ramos
da lógica que, pela própria natureza, têm mais afinidade com a matemática do
que com os demais setores da filosofia). Particularmente, parece humanamente
impossível que os filósofos possam alcançar a certeza e a clareza que
caracterizam a matemática. Essa diferença entre os dois campos de estudo pode
ser atribuída a várias causas. Em primeiro lugar, não se tem mostrado possível
determinar, em filosofia, o significado dos termos do mesmo modo inequívoco que
em matemática. Assim sendo, seu significado pode mudar de forma quase
imperceptível ao longo de uma argumentação, sendo muito difícil nos
certificarmos de que diferentes filósofos utilizam a mesma palavra com o mesmo
sentido. Em segundo lugar, somente na matemática encontramos conceitos simples
formando a base de inúmeras inferências complexas e, todavia, rigorosamente
válidas. Em terceiro lugar, a matemática pura é hipotética, ou seja, não nos
pode dizer o que se passa no mundo real, como, por exemplo, o número de coisas
situadas num dado lugar, mas apenas o que ocorrerá se isso for verdade, como,
por exemplo, que encontraríamos 12 cadeiras numa sala caso lá houvesse 5 + 7
cadeiras. A filosofia, contudo, objetiva ser categórica, isto é, dizer-nos o
que de fato ocorre; conseqüentemente, em filosofia, não é apropriado, como
geralmente se faz em matemática, fazer deduções apenas a partir de postulados
ou definições.
Desse
modo, é impossível encontrar uma analogia adequada entre os métodos da filosofia
e os de qualquer outra ciência. É igualmente impossível definir de modo preciso
qual é o método da filosofia, a não ser limitando de forma grotesca o seu
objeto. A filosofia não emprega um método único, mas uma variedade de métodos
que diferem de acordo com o objeto ao qual são aplicados. E a tentativa de
defini-los de maneira independente de sua aplicação carece de qualquer
propósito útil. De fato, isso é muito perigoso. Ne passado, ela freqüentemente
conduziu a uma limitação equivocada do escopo da filosofia, excluindo tudo
aquilo que não se sujeitasse ao controle de determinado método escolhido como
caracteristicamente filosófico. A filosofia requer grande variedade de métodos,
pois deve abranger em sua interpretação todo tipo de experiência humana. Não
obstante, ela está longe de ser meramente empírica, pois, tanto quanto
possível, tem a tarefa de apresentar uma imagem coerente dessas experiências e
a partir delas inferir o que pode ser inferido de uma realidade distinta da
experiência humana. No que se refere à teoria do conhecimento, deve a filosofia
submeter a uma crítica construtiva todas as modalidades de pensamento; contudo,
devemos reservar um lugar nessa visão para qualquer modo de pensar que se nos
apresente como autojustificado no que há de melhor em nossas reflexões comuns,
e não filosóficas, e não rejeitá-lo por diferir dos outros. Os critérios
filosóficos são, em linhas gerais, a coerência e a abrangência; o filósofo deve
visar a apresentação de uma visão coerente e sistemática da experiência humana
e do mundo, tão esclarecedora quanto o permita a natureza dos casos
investigados, mas não deve buscar coerência à custa de rejeitar aquilo que de
direito é conhecimento real ou crença justificada. Uma séria objeção a uma
filosofia consiste na acusação de que ela sustenta algo em que não podemos
acreditar na vida cotidiana. Essa objeção poderia ser feita a uma filosofia que
logicamente conduzisse, como algumas, à conclusão de que não há um mundo
físico, ou de que todas as nossas crenças, científicas ou éticas, carecem de
qualquer justificação.
FILOSOFIA
E PSICOLOGIA
Há
uma ciência que mantém uma relação bastante peculiar com a filosofia: a
psicologia. Na prática, é muito mais provável que as teorias psicológicas
particulares venham a exercer influência sobre um argumento filosófico ou, uma
teoria a respeito do bem e do mal do que as teorias particulares de uma ciência
física também válida a relação inversa: exceto com relação às partes que se
aproximam da fisiologia, a psicologia, mais do que qualquer setor particular da
física, corre o risco de sofrer as conseqüências adversas oriundas de um
equívoco de ordem filosófica. É provável que isso aconteça devido ao fato de
que apenas recentemente a psicologia emergiu como ciência especial, ao
contrário do que ocorreu com as ciências físicas, que há muito já haviam
alcançado posição estável, dispondo de bastante tempo para esclarecer seus
conceitos básicos de acordo com seus próprios objetivos. Há uma geração, a
psicologia era comumente ensinada por filósofos, sendo muito difícil
considerá-la uma ciência natural. Por conseguinte, não teve tempo para
completar o processo de esclarecimento de seus conceitos fundamentais,
necessário para torná-los, se não filosoficamente inquestionáveis,
suficientemente claros e úteis para a prática da ciência em questão. 0 estado
contemporâneo da física sugere-nos que, quando uma ciência atinge um estágio
mais avançado, tende a se deparar mais uma vez com problemas filosóficos.
Poderíamos então afirmar que o período no qual uma ciência é independente da
filosofia não coincide com seu florescimento ou com os estágios mais avançados
de sua trajetória, mas com a longa fase que separa esses dois extremos. Nesse
sentido, a filosofia pode contribuir de algum modo para a pendente reconstrução
da física.
CETICISMO
Os
filósofos têm-se preocupado muito com uma criatura bastante estranha: o cético
absoluto. Não obstante, tal pessoa não existe. Se existisse, refutá-lo seria
impossível. Similarmente, ele não nos poderia refutar ou afirmar alguma coisa,
nem mesmo seu ceticismo, sem contradizer a si mesmo, pois a afirmação de que
nenhuma espécie de conhecimento ou crença pode ser justificada é uma crença. Em
contrapartida, também não poderíamos provar que o cético está errado, na medida
em que toda prova deve admitir algo, ainda que seja alguma premissa, e também
as leis da lógica. Se o princípio da não-contradição não é verdadeiro, não
podemos refutar algum mediante o argumento de esse alguém está caindo em
contradição. Um filósofo não pode, portanto, partir ex nihilo e provar
tudo: ele é forçado a fazer certas suposições. Em particular, tem de admitir a
verdade das leis fundamentais da lógica, pois de outro modo não seria possível
utilizar argumentos de qualquer espécie ou mesmo formular quaisquer enunciados
significativos. Entre essas leis da lógica, assinalamos duas que são muito
importantes: trata-se dos princípios da não-contradição e do terceiro excluído.
Quando aplicados a proposições, o primeiro afirma que uma proposição não pode
ser ao mesmo tempo verdadeira e falsa, enquanto o segundo afirma que toda
proposição deve ser verdadeira ou falsa. Quando os aplicamos a coisas, o
primeiro afirma que uma coisa não pode ser e não ser ao mesmo tempo ou ter e
não ter uma qualidade ao mesmo tempo, e o segundo, que uma coisa é ou não é e
possui ou não uma qualidade. Concordamos em que esses princípios não soam de
modo a entusiasmar ninguém, mas o fato é que todo nosso conhecimento e todo
nosso pensamento dependem deles. Se a afirmação de algo não excluísse sua
própria contradição, nenhum significado poderia ser atribuído a qualquer
asserção e ninguém poderia jamais ser contestado, na medida em que tanto a
asserção quanto a refutação poderiam ser corretas. Não podemos negar que, em
certos casos, pode ser equivocado atribuir ou não a algo uma qualidade. Seria
incorreto dizer que certas pessoas são ou não calvas, não só devido à ausência
de uma definição precisa do que seja "calvo" mas também porque, na
prática, "calvo" e "não-calvo" significam extremos entre os
quais reside uma classe intermediária de casos em que não deveríamos aplicar um
desses termos, e sim "parcialmente calvo" ou "mais ou menos
calvo".
Não
se trata, portanto, de uma pessoa possuir ou não uma qualidade definida. Todas
as pessoas são dotadas de um grau particular de calvície, embora o uso dos
termos "calvo" e "não-calvo" não deixe claro a que graus de
calvície desejamos referir-nos. Tenho a impressão de que as objeções
ocasionalmente feitas ao princípio do terceiro excluído se escoimam em desentendimentos
desse tipo. De modo similar, o princípio da não-contradição é perfeitamente
compatível com o fato de um homem ser bom com relação a certo aspecto e mau com
relação a outro, ou mesmo com relação ao mesmo aspecto, ser bom num momento e
mau em outro.
A
filosofia deve também aceitar a evidência da experiência imediata , embora essa
atitude não nos leve tão longe quanto poderíamos esperar. Não dispomos
normalmente de experiência imediata sobre outros espíritos, a não ser o nosso,
sendo provável que a evidência da experiência imediata não possa dizer-nos que
os objetos físicos que parecemos experienciar existem independentemente de nós
mesmos. Tornaremos oportunamente a abordar essa questão. Logo constatamos que,
não obstante, deveremos fazer novas suposições, se quisermos admitir que
conhecemos certas coisas a respeito das quais a vida cotidiana não oferece
qualquer suporte para que possamos achar que as conhecemos realmente. Todavia,
não devemos concluir que a impossibilidade de se justificar uma crença do senso
comum mediante um argumento implica necessariamente sua falsidade. Pode ser
que, no nível do senso comum, possuamos um conhecimento genuíno ou uma crença
justificada que seja por si próprio estabelecido e que dispense uma
justificação filosófica. Não cabe ao filósofo, nesse caso, provar a verdade da
crença, pois isso pode ser impossível, mas dar-lhe a melhor explicação
possível, examinando acuradamente aquilo que ela envolve, Se usarmos a
expressão "crença instintiva" para denominar aquele tipo de crença
que tomamos como evidentemente verdadeira antes de qualquer crítica filosófica,
e que continua a parecer evidentemente verdadeira em nossa vida cotidiana após
a crítica filosófica e a despeito dela, podemos afirmar com Bertrand Russell -
que não pode certamente ser acusado de credulidade demasiada - que a única
razão para rejeitar uma crença instintiva é o fato de ela colidir com outras
crenças instintivas, sendo um dos principais objetivos da filosofia produzir um
sistema coerente baseado em nossas crenças instintivas, corrigindo-as o menos
possível e só para preservar sua coerência. Nesse sentido, já que a teoria do
conhecimento só pode basear-se num estudo das coisas reais que conhecemos e da
maneira pela qual as conhecemos, podemos afirmar que o fato de uma teoria
filosófica em particular levar à conclusão de que não podemos conhecer certas
coisas que evidentemente conhecemos, ou que não podemos justificar certas
crenças que obviamente são justificadas, é mais uma objeção à teoria filosófica
em questão que ao conhecimento ou às crenças que ela questiona. Por outro lado,
seria tolice supor que todas as crenças do senso comum devem ser verdadeiras da
maneira como se nos apresentam. Talvez seja função da filosofia aperfeiçoá-las,
mas não descartá-las, ou alterá-las de modo a torná-las irreconhecíveis.
FILOSOFIA
E SABEDORIA PRÁTICA
A
filosofia está associada tanto ao saber teórico quanto à sabedoria prática, à
qual aludimos através de expressões do tipo "considerar filosoficamente as
coisas". De fato, o sucesso da filosofia teórica não nos oferece qualquer
garantia de que seremos filósofos no sentido prático ou de que agiremos e
sentiremos de modo correto sempre que nos envolvermos em determinadas situações
práticas. Uma das doutrinas favoritas de Sócrates é a de que sempre podemos
fazer o bem desde que saibamos o que é o bem; não obstante, isso só é verdade
se acrescentamos ao significado do termo "saber" uma adequada nitidez
emocional daquilo que sabemos do ponto de vista teórico. 0 fato de sabermos (ou
acreditarmos) que fazer algo que desejamos iria acarretar muito mais sofrimento
a uma outra pessoa - o Sr. A - do que prazer para nós mesmos, sendo, em
conseqüência, não-recomendável, não nos impede, todavia, de praticar tal ação,
pois a idéia de causar sofrimento ao Sr. A poderia parecer-nos menos repugnante
que a de perdermos aquilo que cobiçamos. Na medida em que é inteiramente
impossível a qualquer ser humano sentir o sofrimento alheio com a mesma
intensidade que os seus, ocorre sempre a possibilidade de sermos tentados a
abandonar nossos deveres, fazendo-se necessário não apenas o conhecimento, mas
também o exercício da vontade. Nem somos constituídos de modo a ser sempre
fácil, quando somos abandonados à nossa própria moral, nos opormos a um forte
desejo, ainda que disso dependa nossa própria felicidade. A filosofia não é
garantia de nossa conduta correta ou do perfeito ajustamento de nossas emoções
às nossas crenças filosóficas. Nem mesmo do ponto de vista cognitivo é ela
capaz de nos dizer o que devemos fazer. Para isso, precisamos, além de
princípios filosóficos, não só do conhecimento empírico dos fatos relevantes e
da capacidade de prever as prováveis conseqüências, mas também de um insight
da situação particular, de maneira a podermos aplicar adequadamente nossos
princípios.
Obviamente,
não é minha intenção afirmar que a filosofia não contribui para vivermos uma
vida exemplar, mas apenas que não pode por si só levar-nos a viver de modo
exemplar nem decidir o que seja esse tipo de vida. Insisto, entretanto, em que
ela pode, a esse respeito, pelo menos proporcionar valiosas sugestões. E teria
muito mais a dizer sobre a conexão entre filosofia e vida exemplar, se
incluísse neste livro uma discussão especial da ética, disciplina filosófica
que trata do bem e da ação correta. Não obstante, devemos fazer uma distinção
entre filosofia teórica, enquanto explicação do que é, e ética filosófica,
enquanto explicação do bem e da ação correta.
Não
pretendo, ao recorrer a essa ilustração, dar a impressão de ser um hedonista,
ou uma pessoa convencida de que o prazer e a dor sejam os únicos fatores
relevantes para que se possa julgar uma ação boa ou má. Não sou assim.
A
metafísica ou a filosofia crítica nos é de pouca valia para decidirmos o que
devemos fazer. Pode levar-nos a conclusões que facilitem encararmos as
adversidades de maneira mais serena, mas isso depende da filosofa, não havendo
infelizmente acordo universal entre os filósofos quanto à possibilidade de uma
concepção otimista do mundo ser justificada filosoficamente. No entanto,
devemos seguir a verdade aonde quer que ela nos leve, já que nosso espírito,
uma vez desperto, não pode apoiar-se no que carece de justificativa, pois o
pensamento não pode ser uma falsidade. Ao mesmo tempo, devemos estudar atentamente
e não recusar-nos a ouvir as alegações dos que pensam ter alcançado, mediante
recursos que não podem ser incluídos nas categorias usuais do senso comum,
verdades inspiradoras e reconfortantes a respeito da realidade. Não devemos
tomar como certo que as pretensões de uma cognição genuína em matéria de
experiência místico-religiosa, com relação a um diferente aspecto da realidade,
devam ser necessariamente descartadas coma carentes de justificativa apenas por
não se ajustarem a um materialismo sugerido, mas de modo algum provado e,
agora, nem mesmo sustentado pela ciência moderna.
Notas
1 Whitehead, A. N., Adventures
of Ideas, pg. 125.
2 Nossa crítica à atitude
"pragmatista" encontra-se nas pgs. 53-4 e 63-4 adiante.
3 Esse termo tem origem no
fato de ter sido discutido na obra de Aristóteles que foi colocada após (meta)
seu trabalho sobre a física.
Bibliografia
Whitehead, A. C.: The Function of Reason,
Princeton: Princeton University Press.