DOUTRINA DO FALSEAMENTO EM POPPER
Alexandre Marques
` O objectivo deste trabalho é analisar, no contexto da filosofia da ciência,
as propostas de Karl Popper, respeitantes ao critério de demarcação entre o discurso
científico e outros tipos de conhecimento, a sua concepção inovadora do método
científico e as consequências que daí resultam para a ideia de progresso
científico.
No primeiro capítulo, abordaremos a crítica de Popper ao método da
verificação, demonstrando que "o conceito positivista de «significado» ou
«sentido» (ou de verificabilidade, confirmabilidade indutiva, etc.) não é
apropriado para realizar a demarcação entre ciência e metafísica, simplesmente
porque a metafísica não é necessariamente carente de sentido, embora não seja
uma ciência".1
No segundo capítulo, procuraremos abordar a nova tematização do ideal
metódico da ciência, a sua transformação pela colocação da conjecturação no
lugar tradicionalmente atribuído à indução e a substituição da exigência de
verificabilidade dos enunciados pela de falsificabilidade das hipóteses.
Analisaremos a leitura da evolução do conhecimento que daí resulta, leitura que
corta com a narrativa de uma progressiva sucessão de observações e de teorias e
que sugere em alternativa um desenvolvimento problemático em que, através de
tentativas e erros, se vão resolvendo os problemas e inventando outros.
Finalmente, tiraremos algumas conclusões sobre as limitações e
insuficiências do falsificacionismo, argumentando que a história do
conhecimento científico é rica em exemplos que nos mostram que as primeiras
formulações de novas teorias, que implicaram novas concepções imperfeitamente
formuladas, não se abandonaram e desenvolveram-se apesar das aparentes
falsificações, o que traduz uma enorme felicidade para o desenvolvimento da
ciência por não ter atendido estritamente à metodologia do falsificacionismo.
1. A contrastação das hipóteses
pelo método da verificação.
Para Popper, o problema central
da filosofia da ciência reduz-se em grande parte àquilo que ele designa do
problema da demarcação, isto é, a tentativa de estabelecer um critério
que permita distinguir as teorias científicas da metafísica e/ou da
pseudo-ciência. Este ponto inicial, que serve de base à reflexão levada a cabo
pelo autor, poderá levar-nos à primeira vista, a considerar que estamos perante
o mesmo ponto de partida que estimulou o empirismo lógico do Círculo de Viena
nos anos vinte e trinta. No entanto, é urgente precisar que Popper, ao procurar
estabelecer um critério de demarcação, não está imbuído da ambição positivista
de instituir critérios de sentido que excluam ou marginalizem quaisquer
domínios de saber (nomeadamente o metafísico); uma vez que o sentido aparece
sempre, para Popper, solidário da problematicidade que germina, sem
excepção, por todas as áreas do conhecimento e da acção dos homens. Não se
trata pois, da retoma do velho ideal positivista, que passava pela tentativa de
unificação da ciência e pela construção de uma blindagem que protegeria a mesma
de toda e qualquer tentação metafísica. Não é o regresso às famosas distinções
entre frases «com» e «sem» sentido, que animaram fortemente o debate
epistemológico nos anos trinta, que somos levados a assistir com o pensamento
deste autor. "Popper não considera que o problema do significado seja um
problema sério, e ao procurar um critério de demarcação tem exclusivamente o
intuito de delimitar uma área do discurso significativo: a ciência".2
Quando deve ser considerada
científica uma teoria? Qual o critério que determina o status científico de uma
teoria? Há uma condição fundamental para que qualquer hipótese tenha o estatuto
de teoria científica, essa hipótese tem de ser falsificável. Popper
refere claramente que o problema que o preocupa não é determinar quando é
verdadeira ou aceitável uma teoria?, mas sim "distinguir a ciência da
pseudo-ciência, sabendo muito bem que por vezes a ciência erra e a
pseudo-ciência acerta".3 Ele conhecia a resposta comummente
aceite para o seu problema: "a ciência distingue-se da pseudo-ciência – ou
da metafísica – pelo seu método empírico, que é essencialmente indutivo, isto
é, que parte da observação ou da experimentação".4 No
entanto, essa resposta, não o satisfazia. Daí a reformulação do problema com o
intuito de distinguir "um método genuinamente empírico de um método não
empírico ou até pseudo-empírico, isto é, um método que embora fazendo apelo à
observação e à experimentação, não logra adequar-se às normas científicas. Este
último método pode ser exemplificado pela Astrologia, com a sua enorme massa de
dados empíricos baseados na observação, em horóscopos e biografias".5
O critério de demarcação que
Popper encontra implícito na obra dos positivistas é o da verificação,
critério segundo o qual uma proposição é significativa se, e apenas se, puder
ser verificada empiricamente, isto é, se houver um método empírico para decidir
se é verdadeira ou falsa. Na falta de tal método é uma pseudo-proposição
carente de significado ou, quando muito, uma tautologia. Este princípio foi
ligeiramente reformulado pelos empiristas lógicos que encontraram na obra de
Carnap, a sua carta magna: aí a noção de verificação concludente de uma
proposição é substituída pela noção de confirmação gradualmente crescente,
mediante o recurso à observação e à experiência. Importa referir que o conceito
de verificação não perde a sua ligação umbilical à verdade: verificar é tornar
verdadeiro ou ver a verdade de algo.
Popper rejeita este critério e
toda e qualquer tentativa de construir uma lógica indutiva. As suas principais
objecções à lógica indutivista são as tradicionais. No raciocínio indutivo
passamos de um caso (isto é, de um juízo particular) para todos os casos
(isto é, para um juízo universal). Qual a legitimidade lógica do
"salto" que efectuamos nas inferências indutivas? O que nos autoriza
a realizar semelhante tipo de raciocínio? Se os juízos da experiência são
sempre particulares e contingentes (isto é, a relação que neles se estabelece
entre o sujeito e o predicado é particular e contingente), como se pode
formular um juízo universal e necessário que legitime as pretensões das
ciências de possuírem leis com um carácter universal e necessário (únicas que
permitirão a previsão)? Em termos estritamente lógicos, a conclusão de um argumento
não pode ter maior extensão ou conteúdo do que aquilo que é afirmado nas
premissas. Ora, é precisamente esta infracção que se verifica numa proposição
científica de carácter universal, que se fundamenta em premissas que consistem
num conjunto finito de proposições singulares. Popper descobriu uma concepção
secular, a que identifica a ciência como uma actividade estritamente indutiva
que, a partir de umas tantas observações e experiências, avança hipóteses e
formula leis sobre os fenómenos, procedendo depois à sua generalização e
verificação. Foi esta concepção que a ingénua epistemologia da Modernidade
consagrou como paradigmática no âmbito das ciências naturais e, depois,
pretendeu exportar para o conjunto dos saberes e disciplinas. "Tendo rejeitado
a tese de que as proposições científicas podem ser verificadas (...), Popper
tenta reconstruir a lógica da ciência de forma a que somente a lógica dedutiva
seja suficiente para avaliar as proposições científicas. Esta reconstrução dá
lugar a um novo critério de demarcação".6
Popper, ao pretender demarcar-se
do empirismo lógico, mais não faz do que mostrar a outra face do carácter
regulador do conceito metafísico de verdade, quando enuncia o princípio
fundamental do seu falsificacionismo a partir do qual se poderia determinar a
cientificidade de uma proposição: uma proposição só pode considerar-se
científica, se dela for possível deduzir um conjunto de enunciados de
observação que possam falsificá-la, ainda que não a falsifiquem
necessariamente. É o facto de uma teoria científica poder ser teoricamente
falsificável que determina a sua cientificidade, é esse facto que permite
avaliar o seu grau de verosimilhança e que, em última análise, a afasta e
demarca de teorias pseudo-científicas, como a Astrologia. Estas teorias, embora
consigam realizar predições correctas, são formuladas de tal modo que se torna
impossível qualquer tentativa de falsificação e, por esta razão, não são
consideradas teorias científicas.
Podemos tentar resumir os
critérios aceites por Popper para determinar o estatuto científico de uma
teoria, aos seguintes princípios:
. Uma teoria que não é susceptível de refutação não é considerada
científica. A irrefutabilidade não é uma virtude mas sim um vício.
. Todo o teste ou contrastação é uma tentativa para refutar uma teoria.
Neste sentido, a testabilidade equivale à refutabilidade. Algumas teorias são
mais testáveis e, por isso, estão mais expostas à refutação.
. A descoberta de novos factos que estão de acordo com as predições de uma
teoria, não confirmam por si só a teoria mas única e exclusivamente a
corroboram. Uma teoria que é corroborada, quando passa um teste ou
contrastação, isto é, quando uma observação cujo resultado poderia
eventualmente refutar a teoria não se confirma, robustece a própria teoria sem
no entanto a confirmar.
Será útil relembrar, que o critério
de refutabilidade imposto por Popper, não consiste num critério de sentido
ou significação, mas sim no traçar de uma linha divisória entre o discurso
científico e outros tipos de conhecimento. As afirmações de carácter metafísico
não possuem estatuto científico na medida em que não são susceptíveis de ser
falsificadas; o seu carácter de sentido ou significação não é posto em causa; é
este facto que nos permite diferenciar Popper das posições assumidas pelos
autores do positivismo lógico. "(...) A tarefa primordial para uma
demarcação entre a ciência e a metafísica consiste em libertar a metafísica.
(...) É ridículo proibir que se fale de qualquer coisa que não pertença à ciência.
Foi o que o Círculo de Viena tentou fazer. O Círculo de Viena estabeleceu
interdições e decretou: só se pode falar de ciência, tudo o resto é
absurdo."7
"(...) O bem mais precioso do homem são as ideias. Nunca temos ideias suficientes. Daquilo que nos ressentimos é da escassez de ideias. E as ideias são um bem prestimoso, por isso, devemos tratar a metafísica com respeito e discutir – talvez das suas ideias surja alguma coisa. (...)" 8
2. A teoria do falseamento de
Karl Popper, no sentido estrito.
O falsificacionista admite
francamente que a observação é guiada pela teoria e a pressupõe. Também se
congratula de abandonar qualquer afirmação que implique que as teorias se podem
estabelecer como verdadeiras ou provavelmente verdadeiras à luz da evidência
observacional. Uma vez propostas, as teorias especulativas terão que ser
comprovadas rigorosa e implacavelmente pela observação e a experimentação. As
teorias que não superam as provas observáveis e experimentais devem ser
eliminadas e substituídas por outras conjecturas especulativas. A ciência
progride graças ao ensaio e ao erro, às conjecturas e refutações. "O
método da ciência é o método de conjecturas audazes e engenhosas seguidas de
tentativas rigorosas de falseá-las".9 Só sobrevivem as teorias
mais aptas. Nunca se pode dizer licitamente que uma teoria é verdadeira,
pode-se dizer com optimismo que é a melhor disponível, que é melhor que
qualquer das que existiam antes.
Segundo o falsificacionismo,
pode-se demonstrar que algumas teorias são falsas recorrendo aos resultados da
observação e da experimentação. Por outro lado é possível efectuar deduções
lógicas, partindo de enunciados observáveis singulares como premissas, e chegar
à falsificação de teorias e leis universais mediante uma dedução lógica. Exemplo:
num determinado lugar e num determinado tempo, observou-se um corvo que não era
negro. Conclusão: nem todos os corvos são negros. Estamos na presença de uma
dedução logicamente válida.
A falsificação de enunciados
universais pode ser deduzida de enunciados singulares adequados. O
falsificacionista explora ao máximo esta questão lógica. Considera que a
ciência é um conjunto de hipóteses que se propõem a modo de ensaio com o
propósito de descobrir ou explicar de um modo preciso o comportamento de algum
aspecto do mundo ou universo. No entanto, nem todas as hipóteses o conseguem.
Há uma condição fundamental para que qualquer hipótese tenha o estatuto de
teoria científica ou lei científica, essa hipótese tem de ser falsificável.
E uma hipótese é falsificada se existe um enunciado observável ou um conjunto
de enunciados logicamente possíveis que sejam incompatíveis com ela, isto é,
que em caso de serem estabelecidos como verdadeiros, falsificariam a hipótese.
Exemplos de enunciados que não cumprem esse requisito e não podem ser
falsificados: "ou chove ou não chove", "é possível ter sorte na
especulação desportiva", etc. Se um enunciado não é falsificável, então o
mundo pode ter qualquer propriedade e comportar-se de qualquer maneira sem entrar
em conflito com o enunciado. O falsificacionista admite que algumas teorias
passam de facto como teorias científicas somente porque não são falsificáveis e
deveriam por isso ser eliminadas, embora superficialmente possa parecer que
possuem as características das boas teorias científicas. Para que uma teoria
possua um conteúdo informativo, há-de correr o risco de ser falsificada.
Uma boa teoria ou lei científica
é falsificada justamente porque faz afirmações definidas acerca do mundo. Uma
boa teoria será aquela que faz afirmações de muito amplo alcance acerca do
mundo e que, ao ser testada, resista à falsificação. As teorias que tenham sido
falsificadas têm que ser rejeitadas, visto que, como afirma Popper, ao
descobrirmos que a nossa conjectura era falsa, aprendemos muito sobre a verdade
e chegaremos mais perto dela. Aprendemos com os nossos erros. "A ciência
progride mediante o ensaio e o erro".10 Esta atitude de
"vida ou de morte" choca com a precaução recomendada pelo indutivista
ingénuo. Segundo este, só as teorias que se podem demonstrar é que são
verdadeiras ou provavelmente verdadeiras e só essas devem ser admitidas na
ciência. O falsificacionista, em contraposição, reconhece as limitações da
indução e a subordinação da observação à teoria. Os segredos da natureza, somente
se podem descobrir com a ajuda de teorias engenhosas e perspicazes. Quanto
maior for o número de teorias conjecturadas que procuram enfrentar a realidade
e quanto maior for o seu nível especulativo, maiores serão as oportunidades de
realizarmos importantes avanços na ciência. Não existe o perigo de assistirmos
a uma proliferação das teorias especulativas, na medida em que aquelas que
representam descrições inadequadas do mundo podem ser eliminadas drasticamente
em função do resultado da observação ou de outras provas. A exigência da
falsificabilidade das teorias, origina a atractiva consequência de que as
teorias sejam estabelecidas e precisadas com clareza.
O progresso da ciência, tal como o vê o falsificacionista, poderá resumir-se da seguinte forma. A ciência começa com problemas, problemas que estão associados à explicação do comportamento de alguns aspectos do mundo. O cientista propõe hipóteses falsificáveis para solucionar os problemas. As hipóteses são criticadas e comprovadas. Algumas são eliminadas rapidamente, outras podem ter mais êxito. Estas devem submeter-se a críticas e provas mais rigorosas. Quando finalmente se falsifica uma hipótese que tenha superado com sucesso uma grande variedade de testes, surge um novo problema, que é a invenção de novas hipóteses, seguidas de novas críticas e provas. Este processo continua indefinidamente. Por isso nunca se pode afirmar que uma teoria é verdadeira, por muitas provas rigorosas que tenha superado, somente podemos afirmar que a teoria em vigor é superior às suas predecessoras, no sentido de que foi capaz de superar testes que falsificaram as teorias anteriores. No dizer de Popper "(...) só há um caminho para a ciência: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte nos separe – a não ser que obtenhamos uma solução. Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para nosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos nossos dias".11 A afirmação de que a origem da ciência está nos problemas é perfeitamente compatível com a prioridade das teorias sobre a observação e os enunciados observáveis. A ciência não começa com a pura observação. A concepção falsificacionista, proporciona uma imagem dinâmica da ciência.
O progresso da ciência, tal como o vê o falsificacionista, poderá resumir-se da seguinte forma. A ciência começa com problemas, problemas que estão associados à explicação do comportamento de alguns aspectos do mundo. O cientista propõe hipóteses falsificáveis para solucionar os problemas. As hipóteses são criticadas e comprovadas. Algumas são eliminadas rapidamente, outras podem ter mais êxito. Estas devem submeter-se a críticas e provas mais rigorosas. Quando finalmente se falsifica uma hipótese que tenha superado com sucesso uma grande variedade de testes, surge um novo problema, que é a invenção de novas hipóteses, seguidas de novas críticas e provas. Este processo continua indefinidamente. Por isso nunca se pode afirmar que uma teoria é verdadeira, por muitas provas rigorosas que tenha superado, somente podemos afirmar que a teoria em vigor é superior às suas predecessoras, no sentido de que foi capaz de superar testes que falsificaram as teorias anteriores. No dizer de Popper "(...) só há um caminho para a ciência: encontrar um problema, ver a sua beleza e apaixonar-se por ele; casar e viver feliz com ele até que a morte nos separe – a não ser que obtenhamos uma solução. Mas, mesmo que obtenhamos uma solução, poderemos então descobrir, para nosso deleite, a existência de toda uma família de problemas-filhos, encantadores ainda que talvez difíceis, para cujo bem-estar poderemos trabalhar, com um sentido, até ao fim dos nossos dias".11 A afirmação de que a origem da ciência está nos problemas é perfeitamente compatível com a prioridade das teorias sobre a observação e os enunciados observáveis. A ciência não começa com a pura observação. A concepção falsificacionista, proporciona uma imagem dinâmica da ciência.
O progresso da ciência, exige que
as teorias sejam cada vez mais falsificáveis e em consequência tenham cada vez
mais informação, exclui no entanto, que se efectuem modificações nas teorias
destinadas simplesmente a protegê-las da falsificação ou de uma falsificação
ameaçadora. Essas modificações, tal como a adição de mais um postulado sem
consequências que não tenham sido já comprovadas, são denominadas de
modificações ad hoc. As modificações ad hoc são rejeitadas pelo
falsificacionista, no entanto, existe outro tipo de modificações não ad hoc,
aceites pelo falsificacionista. Centramos a nossa atenção na seguinte
proposição: "O pão alimenta". No entanto, em França, numa determinada
região, o trigo que crescia de maneira normal foi convertido em pão normal e a
maioria das pessoas que comeu esse pão ficou gravemente doente. A teoria de que
"todo o pão alimenta" foi falsificada. Podemos modificar a teoria
para evitar a sua falsificação: "Todo o pão alimenta, excepto, aquele que
é produzido numa determinada zona de França". Esta é uma modificação ad
hoc. A teoria modificada não pode ser comprovada de maneira que não o seja
também a teoria original. A hipótese modificada é menos falsificável que a
versão original. O falsificacionista rejeita essas acções de retaguarda. Como
modificar a teoria de uma maneira aceitável? Da seguinte forma: "Todo o
pão alimenta, excepto aquele, cujo trigo é contaminado por um determinado tipo
de parasita". Esta teoria modificada, não é ad hoc porque leva a
novas comprovações. No dizer de Popper, é contrastável de forma independente.
O falsificacionista deve rejeitar as hipóteses ad hoc e estimular a proposta de hipóteses audazes com melhorias potenciais em relação às teorias falsificadas. As confirmações que são conclusões conhecidas de antemão são insignificantes. Se hoje em dia confirmamos a teoria da gravitação universal de Newton atirando uma pedra ao solo, não contribuímos com nada de valor para o progresso da ciência. Ao contrário, se amanhã confirmamos uma teoria especulativa que implica que a atracção gravitatória entre dois corpos depende das suas temperaturas, falsificando a teoria de Newton, teremos realizado um avanço importante no conhecimento científico.
O falsificacionista deve rejeitar as hipóteses ad hoc e estimular a proposta de hipóteses audazes com melhorias potenciais em relação às teorias falsificadas. As confirmações que são conclusões conhecidas de antemão são insignificantes. Se hoje em dia confirmamos a teoria da gravitação universal de Newton atirando uma pedra ao solo, não contribuímos com nada de valor para o progresso da ciência. Ao contrário, se amanhã confirmamos uma teoria especulativa que implica que a atracção gravitatória entre dois corpos depende das suas temperaturas, falsificando a teoria de Newton, teremos realizado um avanço importante no conhecimento científico.
Logo que Popper formula as suas
primeiras posições epistemológicas, não podia deixar de encontrar no seu
caminho os predicados centrais do empirismo lógico: antes de mais, as ciências
empíricas não poderiam admitir enunciados que se não apoiassem em observações,
porque tais enunciados são pura e simplesmente desprovidos de sentido; o método
legítimo das ciências empíricas é o indutivo; graças a ele, o espírito humano
organiza as informações que recolhe da observação e que se armazenam
passivamente nos seus sentidos e percepções; só a observação de repetições ou
de frequências na natureza permite ao homem de ciência inferir a existência de
relações constantes formalizáveis no interior de asserções gerais (instrução por
repetição); por fim, a acumulação indefinida de observações e
experimentações permite verificar progressivamente a justeza ou
falsidade das primeiras hipóteses (princípio de verificação).
Os teóricos do Círculo de Viena
pensavam, assim, ser detentores do critério de demarcação que permitia
separar, na totalidade dos enunciados, o trigo do joio: um enunciado com
sentido era um enunciado capaz de passar com êxito a prova da verificação, ou
então, significado de um enunciado é o método da sua verificação. A Lógica
da Descoberta científica, editada em 1934, é uma réplica directa às teses
do Círculo de Viena. Karl Popper decide partilhar com os seus leitores uma
convicção que jamais o abandonará: o indutivismo, tanto na sua versão
maximalista (acesso certo à verdade) como na sua versão moderada (acesso
provável à verdade), é um mito que contamina desgraçadamente as ciências
da natureza e que deve ser perseguido sem piedade.
Em primeiro lugar, reconhece a
David Hume o insigne mérito de ter demonstrado que o método indutivo se privava
a si próprio de fundamento lógico. Com efeito, não é possível extrapolar, a
partir de uma série finita de observações particulares, um princípio de alcance
universal generalizável, em seguida, a observações que ainda não foram efectuadas.
Popper actualiza e radicaliza o raciocínio de David Hume que se ligava, apesar
de tudo, ao indutivismo por razões de ordem prática e psicológica. Um grande
número de enunciados singulares nunca permite inferir um enunciado geral. Em
contrapartida, basta um único enunciado geral preexistente. Pouco importa o
grande número de cisnes brancos que tenhamos observado; não justifica a
conclusão de que todos os cisnes são brancos.
Depois, invertendo a ordem de
encadeamento criada pelos partidários do empirismo lógico, Popper proclama a
preeminência absoluta da teoria sobre a observação: em fase alguma do
desenvolvimento científico, escreve, começamos por algo que não seja semelhante
a uma teoria, uma hipótese, uma opinião preconcebida ou um problema que, em
certa medida, guia as nossas observações e nos ajuda a escolher, entre os
inúmeros temas de observação, aqueles que podem ser interessantes. A observação
é sempre selectiva, não se resume nunca a sensações ou percepções que o
observador se limitaria a transcrever em relatórios escritos, é parcialmente
determinada pelas expectativas e problemas que existem no espírito do
investigador e que ele retira de um conhecimento anterior (background
knowledge). Não existe observação e, de um modo mais geral, conhecimento
que não esteja, à partida, impregnado de teoria.
Deveria talvez ter-se dado mais
atenção a Hume, quando ele observou que não é possível validar logicamente a
inferência indutiva que do particular passa ao universal, e propôs que se
transferisse para um outro nível, o do hábito, a sua explicação. Foi isso que,
como já se referiu, fez Popper, que prolongou a proposta de Hume até à rejeição
da ideia de que a ciência, e mais geralmente o conhecimento, tem uma base
indutiva, substituindo-a por uma actividade conjectural, hipotética.
Não se contesta, nesta orientação, o ideal metódico da ciência moderna,
o que se pretende é transformá-lo colocando a conjecturação no lugar
tradicionalmente atribuído à indução e substituindo, no mesmo lance, a
exigência de verificabilidade dos enunciados pela de falsificabilidade das
hipóteses. Perspectiva que assim permite, por um lado, que não se desvalorizem
os saberes não científicos, nomeadamente a filosofia, à qual se atribui um
papel preponderante no crescimento do conhecimento devido à sua singular
prática do debate, à particularidade da sua argumentação e à especificidade dos
seus problemas; e, por outro lado, que a concepção da história da ciência que
sustentava uma visão cumulativa dos saberes seja – uma vez privada do seu
pressuposto indutivista – seriamente abalada. Popper propõe uma leitura da
evolução do conhecimento que corta com a narrativa de uma progressiva sucessão
de observações e de teorias, sugerindo em alternativa que se veja a história da
ciência como um desenvolvimento problemático em que, através de tentativas e
erros, se vão resolvendo uns problemas e inventando outros.
A dignidade concedida à refutação em detrimento da verificação provoca
várias consequências: uma teoria com pretensão científica deve, em primeiro
lugar, satisfazer uma condição de testabilidade. Será considerada testável a
partir do momento em que se possam inferir de forma dedutiva um ou vários
predicados que, em virtude de algumas condições chamadas iniciais, poderão ser
confrontados com factos e submetidos a testes severos e acessíveis. O critério
popperiano deve, em segundo lugar, ser entendido como uma regra de preferência
e não como uma regra de justificação. O homem de ciência nunca pode fundar
positivamente uma asserção geral, mas é-lhe lícito, em contrapartida, preferir
uma asserção a outra se defrontar mais eficazmente a prova da experiência.
Finalmente, uma teoria nunca é mais do que uma hipótese, uma tentativa que tem
em vista compreender o mundo, nunca pode ser verificada, mas pode, em
contrapartida, ser corroborada. Será considerada corroborada uma teoria que até
então tenha resistido com êxito aos testes mais severos e não tenha sido
substituída com vantagem por uma teoria rival. Mas, cuidado, a corroboração
popperiana não é de forma alguma um sucedâneo da confirmação carnapiana; uma
hipótese corroborada é uma hipótese aceite provisoriamente pela comunidade científica,
mas cujo destino natural é ser, um dia, desmembrada pela superveniência de
novos factos. No fundo, para Popper, as teorias mais válidas nunca são teorias
verdadeiras, mas apenas teorias que ainda não são falsas. O conhecimento é
sempre imperfeito, mas perfectível. A verdade absoluta não está ao nosso
alcance; e, ainda que a alcançássemos, não poderíamos sabê-lo. O real é uma
espécie de ideia da razão, mas temos motivos para pensar que a ciência se
aproxima progressivamente dele.
"(...) As teorias científicas são de tudo o que mais violentamente
está exposto à crítica. São elas que, após um processo de depuração, um
processo de purificação, um processo de falsificação, temos perante nós. Creio
que as teorias são o que de melhor contém o Mundo Três. (...)"12
CONCLUSÃO
Vários foram os epistemólogos e investigadores da história das ciências
que contribuíram para uma superação da concepção positivista da ciência e de
forma particular para o surgimento do que se veio a designar por "nova filosofia
da ciência".
De entre outros está Karl Popper. Este defendeu que não existe processo
algum de indução pelo qual possam ser confirmadas as teorias científicas.
Popper criticou aquilo a que chamou o mito do "observatismo",
vigente no modelo de investigação positivista, segundo o qual a observação pode
ser fonte segura do conhecimento. Segundo Popper, por detrás da ideia de
indução, encontra-se a convicção errada de que o investigador pode observar e
experimentar a realidade sem pressupostos e sem preconceitos. Não se pode
admitir que o espírito do investigador se comporte como uma tábua rasa, já que
tal seria ignorar o facto de que sempre se observa e se experimenta em função
de problemas, teorias e modelos que condicionam a investigação. Quer na vida
quotidiana quer na ciência, a observação não é o primeiro passo; há sempre algo
que orienta o conhecimento – antecipações e expectativas na vida quotidiana;
teorias no plano da ciência. É falso que o cientista parte de observações,
tentando generalizá-las.
O método científico processa-se de outro modo, numa tentativa de provar
a falsidade (e não a verdade) das hipóteses de que parte, verificando até que
ponto elas resistem a hipóteses contrárias.
Se alguém pensar no método científico como um meio para justificar
resultados científicos, ficará decepcionado. Um resultado científico não pode
ser justificado. Só pode ser criticado e testado. E nada mais se pode dizer em
seu favor senão que, depois de todas essas críticas e testes, ele parece
melhor, mais interessante, mais forte, mais promissor e constituindo uma melhor
aproximação da verdade do que dos seus rivais.
O falsificacionista insiste que a actividade científica deve dedicar-se
à tentativa de falsificar as teorias estabelecendo a verdade dos enunciados
observados que são incompatíveis com elas. Assim a aceitação de uma teoria é
sempre provisória e, por outro lado, a rejeição de uma teoria pode ser concludente.
No entanto, nada há na lógica deste processo, que exija que seja sempre a
teoria a ser rejeitada em caso de choque com a observação. Podemos rejeitar um
enunciado observável falível e conservar a teoria com que choca. Foi o que
sucedeu quando se conservou a teoria de Copérnico e se rejeitou a observação de
que Vénus não variava apreciavelmente de tamanho durante o ano, o que era
incompatível com a teoria de Copérnico. A ciência está plena de exemplos de
rejeição de enunciados observáveis e conservação das teorias com que chocam.
A essência da postura de Popper sobre enunciados observáveis é que a sua
aceitação se mede pela sua capacidade para sobreviver a provas. As que não
superam as provas são rejeitadas, as que as superam são conservadas de modo
provisório. Popper sublinha o papel das decisões dos indivíduos e grupos de
indivíduos para aceitar ou rejeitar os enunciados observáveis que ele define
como "enunciados básicos". Assim os enunciados básicos são aceites
como resultado de uma decisão ou acordo e nessa medida são convenções. As
decisões conscientes dos indivíduos, introduz um elemento subjectivo que choca
em certa medida com a posterior insistência por parte de Popper numa ciência
"como processo sem sujeito".
Uma outra limitação do falsificacionismo resulta do facto de as teorias
não poderem ser rejeitadas de um modo concludente, e isto porque os enunciados
observáveis que servem de base para a falsificação poderem resultar falsos à
luz de posteriores progressos.
Se os cientistas tivessem atendido estritamente à metodologia do
falsificacionismo, as teorias que hoje se consideram em geral como os melhores
exemplos de teorias científicas, nunca teriam sido desenvolvidas, porque teriam
sido rejeitadas logo à sua nascença. Em qualquer exemplo de uma teoria
científica clássica, no momento da sua primeira formulação, é possível
encontrar afirmações observáveis que foram geralmente aceites nessa época e que
eram consideradas incompatíveis com a teoria. No entanto, estas teorias não
foram rejeitadas e foram fundamentais para o desenvolvimento do conhecimento
científico. As primeiras formulações de novas teorias, que implicavam novas
concepções imperfeitamente formuladas, não se abandonaram e desenvolveram-se
apesar das aparentes falsificações.
Consideramos que o falsificacionismo, apesar da óptima recepção e do
quase inconsciente acolhimento que teve nos meios científicos, sobretudo nos
mais experimentalistas, terá sido um dos últimos expoentes de uma concepção de
ciência regulada pelo conceito de verdade. Nos últimos anos, esta concepção de
ciência e a consequente distinção entre o grau de certeza das "ciências
naturais e exactas" e a subjectividade das "ciências humanas e
sociais" têm vindo progressivamente a ser postas em causa por um conjunto
de factores, de entre os quais é possível destacar fundamentalmente este. A
introdução da noção de paradigma ao nível da epistemologia e do conceito de
revolução científica, que lhe corresponde ao nível da história das ciências.
Thomas Kuhn procurava descobrir quais os elementos que um conjunto de
cientistas partilhava com outros, para que fosse possível quer o seu trabalho
de investigação, quer a comunicação com outros investigadores. Chegou assim à
noção de paradigma enquanto estrutura pré-conceptual que permite olhar o real,
identificar os fenómenos e classificá-los, antes de passar ao seu estudo mais
aprofundado. Esta noção representa um golpe extremamente significativo numa
concepção positivista de ciência, pois admite factores extra-científicos na
produção do conhecimento científico (o paradigma é constituído por componentes
científicas e religiosas, psicológicas, metafísicas, etc.). Deste modo, através
de uma concepção paradigmática de ciência são postos em causa os critérios que
a demarcam de outros saberes pela sua relação à verdade: se um paradigma é a
pré-estrutura conceptual de uma investigação científica, passa a ser descabido
opor a ciência às humanidades e à filosofia, como se a primeira fosse um
conhecimento meramente explicativo e as segundas formas de saber compreensivo e
interpretativo.
Conhecer um facto científico é inseri-lo, através de um modelo, numa
estrutura prévia que lhe dá sentido (o paradigma), ou seja, é compreendê-lo e
interpretá-lo.
No nosso entendimento, uma das grandes limitações do discurso de Popper
reside, na não percepção do significado social do conhecimento científico. Como
é que a sociedade intervém na ciência? Popper não responde a este problema nem
à questão crucial da neutralidade da verdade científica. É ou não possível uma
ciência neutral?
Concluindo, é lícito afirmar que a tematização do método científico
avançada por Popper é, apesar da ampla reformulação de diversas das suas teses,
solidária de uma imagem da ciência que se foi consolidando desde o século XVIII
e que tende a identificar a cientificidade com a racionalidade – senão com a
racionalidade «no seu todo», pelos menos com a racionalidade «no seu melhor». A
ideia generalizada de que em ciência se procura uma adequação entre o intelecto
e as coisas (conceito de verdade). Popper não supera essa ideia da teoria
clássica da ciência. O seu falsificacionismo, surge como um espaço de transição
entre uma visão clássica e uma visão nova de ciência. Esta situação foi
definitivamente superada com o aparecimento de uma análise de ciência que
abandonou a abordagem tradicional e que se deve à obra de T. S. Kuhn, A
Estrutura das Revoluções Científicas.
1 Karl, Popper, Conjecturas e
Refutaciones, Barcelona, Ed. Paidos, s/d., p. 281.
2 H., Brown, "La nueva
filosofia de la ciência", Madrid, editorial Tecnos, 1983, p. 89.
3 K., Popper, Ob. cit. 57.
4 Ibidem
5 Idem 58.
6 H., Brown, Ob. cit. 90.
7 K., Popper, O futuro está
Aberto, Lisboa, editorial Fragmentos, 2ª ed., s/d., p. 60.
8 Idem 64.
9 K., popper, Conocimiento
Objectivo, Madrid, Editorial Tecnos, 2ª ed., 1982, p. 83.
10 A., chalmers, Qué es esa Cosa
Lhamada ciencia?, México, Siglo Vientiuno, s/d., p. 66.
11 K., Popper, O Futuro está
aberto, Lisboa, editorial fragmentos, 2ª ed., s/d., p. 3.
12 K., Popper, O Futuro está
aberto, editorial fragmentos, 2ª ed., s7d., p. 85.
BIBLIOGRAFIA FONTES:
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de la Ciencia, Trad. de G. Solana Diez e H. Marraud González, Madrid, Tecnos,
1983.
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Cosa Lhamada Ciencia, México, Siglo Veintiuno, s/d.
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Popper, Karl, Conocimiento
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Popper, Karl, O Realismo e o
Objectivo da Ciência, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1987. Popper, Karl, A Teoria dos Quanta
e o Cisma na Física, Lisboa, Publicações Dom Quixote, 1989.
Popper, Karl, O Futuro está
Aberto, Trad. Teresa Curvelo, 2ª ed., Lisboa, Editorial Fragmentos, s/Popper, Karl, Conjecturas e
Refutaciones, Barcelona, Ediciones Paidos, s/d.
OBRAS AUXILIARES:
Baudouin, Jean, Karl Popper,
Lisboa, Edições 70, s/d.
Bunge, M., La Investigación
Científica, Barcelona, Ariel, 1976.
Magalhães, Baptista, J., A Ideia
de Progresso em Thomas Kuhn, Porto, Ed. Contraponto, 1996.